Por André Anacoreta
“O artista não
obedece a regras fixas. Ele simplesmente intui o caminho a seguir”.
E.G
Certamente que há muitas
dificuldades em torno de tentar definir o que é e o que não é arte. Pois a
simples tentativa, a simples intenção de objetivação, acaba por impor uma lei –
mais que isso – uma ditadura da arte. Por isso que, acertadamente, Gombrich diz
que “existem somente artistas”. Um modo sutil e inteligente de “escapar” com
estilo de tal problemática. Contudo, ele não apenas soube sair com esperteza,
mas também procurou sugerir um caminho na direção de um melhor entendimento da
relação do artista com sua obra. De como que o artista é afetado por sua
criação, sangrando junto de cada tema, de cada retomada de pincelada; de cada
linha; de cada passo ao desconhecido. Acontece que o artista, mais do que viver
de sua arte, vive sua arte, respira por ela. E cada arte e artista, em cada
época, atingem a si e aos outros de modos diferentes. Como observa o autor:
“Ora, os pintores sentem, às vezes, como se estivessem nessa viajem de
descoberta. Querem ver o mundo como uma novidade e rejeitar todas as noções
aceitas e todos os preconceitos sobre a cor rosada da carne e as maçãs
amareladas ou vermelhas. Não é fácil nos livrarmos dessas ideias preconcebidas,
mas os artistas que melhor conseguem fazê-lo produzem geralmente as obras mais
excitantes. Eles é que nos ensinam a ver na natureza novas belezas de cuja
existência não tínhamos sequer suspeitado.”.
Se a arte fosse
homogênea e imutável, e não evoluísse a partir de si mesma e sobre o mundo, de
modo algum seria possível a tão rica variedade que vem se tecendo desde os
tempos mais antigos. O artista é como um espelho que reflete o exterior – que
está fora, no mundo – e o interior, que são suas angústias, seus medos, seus
desejos, seus sonhos. Ele consegue fazer a fusão desses dois mundos e através
disso gerar os mais diversos olhares; suscitar as mais diversas sensações;
provocar os mais incríveis assombros. Mesmo quando sofre alguma limitação
propriamente sua ou externamente imposta, como no caso citado por Ernst
Gombrich, a saber, o que envolveu o pintor italiano Caravaggio e seu quadro de
São Mateus: “[...] Recebeu ele a encomenda de pintar um quadro de São Mateus
para o altar de uma igreja em Roma. O santo deveria ser reproduzido escrevendo
o evangelho e, para mostrar que os evangelhos eram a palavra de Deus, teria que
haver no quadro um anjo inspirando a escrita. Caravaggio, que era então um
jovem artista altamente imaginativo e decidido, pensou longamente sobre a
provável situação de um velho e pobre trabalhador, simples publicano, ao ter
subitamente que se sentar para escrever um livro. E, assim, pintou um quadro de
São Mateus calvo e descalço, os pés sujos de terra, agarrando desajeitadamente
o enorme volume e franzindo ansiosamente o cenho sob a tensão da incomum tarefa
de escrever. Ao lado do santo, pintou um jovem anjo que parece recém-chegado
das alturas e que gentilmente guia a mão do trabalhador como uma professora faz
com a mão de uma criança. Quando Caravaggio entregou o quadro à igreja, em cujo
altar-mor seria colocado, as pessoas se escandalizaram com o que consideraram
uma falta de respeito pelo santo. A pintura não foi aceita, e Caravaggio teve
que tentar de novo. [...]”.
Caravaggio pintava
para a Igreja, mas não se restringia em ser seu fantoche. Em cada obra colocava
seu toque, imprimia seu olhar e seu traço únicos. Daí que quando vemos um
quadro de Caravaggio pela segunda ou terceira vez, – sua cor, seu jogo de
luzes, sua expressão sentimos a necessidade de dizer: “eis um Caravaggio!”,
porque somos inclinados a reconhecer o que é próprio da sua obra, o que o faz ser
diferente de todos os outros artistas, mesmo quando partilham do mesmo tema e
estilo. E quando o fazemos, confirmamos sua peculiar capacidade de nos provocar
as mais tocantes sensações. Deixamo-nos atingir pela “carga elétrica” que cada
quadro carrega, fundindo nossa sensibilidade mais profunda à sua potência, como
o oceano que recebe os raios do céu.
Os artistas, de modo
geral, sempre estão procurando por algo e é na procura, no caminho que os
obstáculos aparecem. O que levou o zombador Picasso a dizer “Eu não procuro, eu
encontro”. O artista é também como um gato que fica a espreita: quando menos se
espera ele dá o bote certeiro. Quando ele encontra o que tanto almeja eis seu
momento de deus! Inicia-se o nascimento, o ato que mistura prazer e dor; o
parto de uma nova ideia; a aurora de um novo tempo. E se o filho que acaba de
nascer for belo e perfeito aos seus olhos – por vaidade ou satisfação – sentirá
o desejo de mostrá-lo ao mundo ou de ocultá-lo e protegê-lo das garras da
mediocridade. Pois pode ser que o mundo não esteja preparado para apreciar tal
beleza, ou, que não tenha mesmo a capacidade de ver o que o artista quis
mostrar. Neste caso, a obra do artista corre o sério risco de ser interpretada
como anomalia, como algo grotesco e repugnante, ou simplesmente como algo
excêntrico, digno de gargalhadas. Porque o riso (e o choro) é uma defesa contra
aquilo que não compreendemos. A primeira reação de alguém que, de modo algum, é
capaz de apreciar as sutilezas de uma nova ideia, de um novo olhar, de algo
revolucionário que quebra todas as regras e convenções e preconceitos e
tradições, é rir tal qual uma hiena, que assim procede sem saber o motivo do
riso.
Já no final da
introdução de sua grande obra História da Arte, Gombrich nos diz algo – a
respeito de alguns dos grandes artistas que este mundo assistiu, como Paul
Rubens, Albrecht Dürer, Guido Reni, Rembrandt etc.; – que os apaixonados pelas
artes, muitas vezes, são obrigados a trancar na garganta. Diz que eles sofreram
por suas obras, “sobre elas suaram sangue e, no mínimo, têm o direito de nos
pedir que tentemos compreender o que quiseram realizar”. Uma arte que não está
ligada à vida pelo cordão umbilical, não tem o porquê de ser. Tudo o que o
artista faz, do momento em que acorda, até o momento de descansar, está intrinsecamente relacionado à sua criação. Porém, não se trata apenas de
produzir, mas de ser ele próprio uma obra de arte ambulante, capaz de notar os
mais ínfimos detalhes da existência. Como se carregasse no espírito uma lupa
com o poder de ampliar a percepção. Se se trata realmente disso, nada pode
barrar o seu crescimento e, junto com ele, sua curiosidade sempre aguçada. Como
o pássaro que canta quando a aurora já ensaia seus primeiros passos do dia e
alça voo com a chegada do crepúsculo, assim é o artista que cria por
necessidade e que, por isso mesmo, pode ser chamado de artista por direito. Não
necessidade de dinheiro, poder ou fama, mas necessidade de exprimir o seu devaneio
diante das perplexidades da vida. Necessidade de expressar seus sentimentos
mais subterrâneos. Sendo assim, como sofrem os artistas! Tanto suor escavando a
crosta da alma, tanto empenho enfrentando os labirintos da mente, escalando o
muro das imposições, para no final ser compreendido por tão poucas
cabeças.
Se não existe Arte
com A maiúsculo, é porque também não existe a Verdade Absoluta. O que existe é
a minha verdade, a sua verdade. Minha arte, sua arte. A arte é o universo e
nele cabem bilhões de estrelas, umas mais distantes, outras mais brilhantes. E,
como as estrelas, a arte tem nos acompanhado desde sempre. Desde sempre vem nos
guiando pelos caminhos tortuosos e tornando o nosso trajeto mais belo e
confortante. Ela só nos pede que não a esquecemo-la; que continuemos a olhar
para o céu em busca do mistério; que não nos habituemos à vida, ao tempo, às
mesmices do quotidiano. Antes que os nossos olhos se fechem de vez e a morte
nos ponha para dormir, no eterno sono sem sonhos.
Imagem: São Mateus e o Anjo, Caravaggio
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