Os devaneios do general

Abre-se uma clareira azul no escuro céu de inverno.

O sol inunda os telhados de Jacarecanga. Um galo salta para cima da cerca do quintal, sacode a crista vermelha que fulgura, estica o pescoço e solta um cocoricó alegre. Nos quintais vizinhos outros galos respondem.



O sol! As poças d’água que as últimas chuvas deixaram no chão se enchem de jóias coruscantes. Crianças saem de suas casas e vão brincar nos rios barrentos das sarjetas. Um vento frio afugenta as nuvens para as bandas do norte e dentro de alguns instantes o céu é todo um clarão de puro azul.

O General Chicuta resolve então sair da toca. A toca é o quarto. O quarto fica na casa da neta e é o seu último reduto. Aqui na sombra ele passa as horas sozinho, esperando a morte. Poucos móveis: a cama antiga, a cômoda com papeis velhos, medalhas, relíquias, uniformes, lembranças; a cadeira de balanço, o retrato do Senador; o busto do Patriarca; duas ou três cadeiras… E recordações… Recordações dum tempo bom que passou, — patifes! — dum mundo de homens diferentes dos de hoje. — Canalhas! — duma Jacarecanga passiva e ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo.

O general aceita o convite do sol e vai sentar-se à janela que dá para a rua. Ali está ele com a cabeça atirada para trás, apoiada no respaldo da poltrona. Seus olhinhos sujos e diluídos se fecham ofuscados pela violência da luz. E ele arqueja, porque a caminhada do quarto até a janela foi penosa, cansativa. De seu peito sai um ronco que lembra o do estertor da morte.

O general passa a mão pelo rosto murcho: mão de cadáver passeando num rosto de cadáver. Sua barbicha branca e rala esvoaça ao vento. O velho deixa cair os braços e fica imóvel como um defunto.

Os galos tornam a cantar. As crianças gritam. Um preto de cara reluzente passa alegre na rua com um cesto de laranjas à cabeça.

Animado aos poucos pela ilusão de vida que a luz quente lhe dá, o general entreabre os olhos e devaneia…

Jacarecanga! Sim senhor! Quem diria? A gente não conhece mais a terra onde nasceu… Ares de cidade. Automóveis. Rádios. Modernismos. Negro quase igual a branco. Criado tão bom como patrão. Noutro tempo todos vinham pedir a benção ao General Chicuta, intendente municipal e chefe político… A oposição comia fogo com ele.

O general sorria a um pensamento travesso. Naquele dia toda a cidade ficou alvoroçada. Tinha aparecido na “Voz de Jacarecanga” um artigo desaforado… Não trazia assinatura. Dizia assim: “A hiena sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93 agora tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada”. Era com ele, sim, não havia dúvida. (Corria por todo o Estado a sua fama de degolador.) Era com ele! Por isso Jacarecanga tinha prendido fogo ao ler o artigo. Ele quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o revólver. Largou. Resmungou “Patife! Canalha!” Depois ficou mais calmo. Botou a farda de general e dirigiu-se para a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido mas covarde. Entrou de chapéu na mão, tremendo. Ficaram os dois sozinhos, frente a frente.

— Sente-se, canalha!

O Mendanha obedeceu. O general levantou-se. (Brilhavam os alamares dourados contra o pano negro do dólmã.) Tirou da gaveta da mesa a página do jornal que trazia o famoso artigo. Aproximou-se do adversário.

— Abra a boca! — ordenou.

Mendanha abriu, sem dizer palavra. O general picou a página em pedacinhos, amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro.

— Come! — gritou.

Os olhos de Mendanha estavam arregalados. O sangue lhe fugira do rosto.

— Coma! — sibilou o general.

Mendanha suplicava com o olhar. O general encostou-lhe no peito o cano do revolver e rosnou com raiva mal contida.

— Coma, pústula!

E o homem comeu.

Um avião passa roncando por cima da casa, cujas vidraças trepidam. O general tem um sobressalto desagradável. A sombra do grande pássaro se desenha lá em baixo, no chão do jardim. O general ergue o punho para o ar, numa ameaça.

— Patifes! Vagabundos, ordinários! Não têm mais o que fazer? Vão pegar no cabo duma enxada, seus canalhas. Isso não é serviço de homem macho.

Fica olhando, com olho hostil, o avião amarelo que passa voando rente aos telhados da cidade.

No seu tempo não havia daquelas engenhocas, daquelas malditas máquinas. Para que servem? Para matar gente. Para acordar quem dorme. Para gastar dinheiro. Para a guerra. Guerras covardes, as de hoje! Antigamente brigava-se em campo aberto, peito contra peito, homem contra homem. Hoje se metem os poltrões nesses “banheiros” que voam, e lá de cima se põem a atirar bombas em cima da infantaria. A guerra perdeu toda a sua dignidade.

O general remergulha no devaneio.

93… Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando se aproximava a hora do combate, ele ficava assanhado. Tinha perto de cinqüenta anos mas não se trocava por nenhum rapaz de vinte.
Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento… Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca!

Morte… O general vê mentalmente uma garganta aberta sangrando. Fecha os olhos e pensa naquela noite… Naquela noite que ele nunca mais esqueceu. Naquela noite que é uma recordação que o há de acompanhar decerto até o outro mundo… se houver outro mundo.

Os seus vanguardeiros voltaram contando que a força revolucionária estava dormindo desprevenida, sem sentinelas… Se fizessem um ataque rápido, ela seria apanhada de surpresa. O general deu um pulo. Chamou os oficiais. Traçou o plano. Cercariam o acampamento inimigo. Marchariam no maior silêncio e, a um sinal, cairiam sobre os “maragatos”. Ia ser uma festa! Acrescentou com energia: “Inimigo não se poupa. Ferro neles!”

Sorriu um sorriso torto de canto de boca. (Como a gente se lembra dos mínimos detalhes…) Passou o indicador da mão direita pelo próprio pescoço, no simulacro duma operação familiar… Os oficiais sorriam, compreendendo. O ataque se fez. Foi uma tempestade. Não ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Quando a madrugada raiou, a luz do dia novo caiu sobre duzentos homens degolados. Corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres. O general passou por entre os destroços. Encontrou conhecidos entre os mortos, antigos camaradas. Deu com a cabeça dum prisioneiro fincada no espeto que na tarde anterior servira aos maragatos para assar churrasco. Teve um leve estremecimento. Mas uma frase soou-lhe na mente: “Inimigo não se poupa”.

O general agora recorda… Remorso? Qual! Um homem é um homem e um gato é um bicho.

Lambe os lábios gretados. Sede. Procura gritar:

— Petronilho!

A voz que sai da garganta é tão remota e apagada que parece a voz de um moribundo, vinda do fundo do tempo, dum acampamento de 93.

— Petronilho! Negro safado! Petronilho!

Começa a bater forte no chão com a ponta da bengala, frenético. A neta aparece à porta. Traz nas mãos duas agulhas vermelhas de tricô e um novelo de lã verde.
— Que é, vovô?

— Morreu a gente desta casa? Ninguém me atende. Canalhas! Onde está o Petronilho?

— Está lá fora, vovô.

— Ele não ganha pra cuidar de mim? Então? Chame ele.

— Não precisa ficar brabo, vovô. Que é que o senhor quer?

— Quero um copo d’água. Estou com sede.

— Por que não toma suco de laranja?

— Água, eu disse.

A neta suspira e sai. O general entrega-se a pensamentos amargos. Deus negou-lhe filhos homens. Deu-lhe uma única filha mulher que morreu no dia em que dava à luz uma neta. Uma neta! Por que não um neto, um macho? Agora aí está a Juventina, metida o dia inteiro com tricôs e figurinos, casada com um bacharel que fala em socialismo, na extinção dos latifúndios, em igualdade. Há seis anos nasceu-lhe um filho. Homem, até que enfim! Mas está sendo mal educado. Ensinam-lhe boas maneiras. Dão-lhe mimos. Estão a transformá-lo num maricas. Parece uma menina. Tem a pele tão delicada, tão macia, tão corada… Chiquinho… Não tem nada que lembre os Campolargos. Os Campolargos que brilharam na guerra do Paraguai, na Revolução de 1893 e que ainda defenderam o governo em 1923…

Um dia ele perguntou ao menino:

— Chiquinho, você quer ser general como o vovô?

— Não. Eu quero ser doutor como o papai.

— Canalhinha! Patifinho!

Petronilho entra, trazendo um copo de suco de laranja.

— Eu disse água! — sibila o general.

O mulato sacode os ombros.

— Mas eu digo suco de laranja.

— Eu quero água. Vá buscar água, seu cachorro!

Petronilho responde sereno:

— Não vou, general de bobagem…

O general escabuja de raiva, esgrime a bengala, procurando inutilmente atingir o criado. Agita-se todo, num tremor desesperado.

— Canalha! — cicia arquejante — Vou te mandar dar umas chicotadas!

— Suco de laranja — cantarola o mulato.

— Água! Juventina! Negro patife! Cachorro!

Petronilho sorri:

— Suco de laranja, seu sargento!

Com um grito de fera o general arremessa a bengala na direção do criado. Num movimento ágil de gato, Petronilho quebra o corpo e esquiva-se do golpe.

O general se entrega. Atira a cabeça para trás e, de braços caídos, fica todo trêmulo, com a respiração ofegante e os olhos revirados, uma baba a escorrer-lhe pelos cantos da boca mole, parda e gretada.

Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Veio oferecer-se de propósito para cuidar do general. Pediu apenas casa, comida e roupa. Não quis mais nada. Só tinha um desejo: ver os últimos dias da fera. Porque ele sabe que foi o general Chicuta Campolargo que mandou matar o seu pai. Uma bala na cabeça, os miolos escorrendo para o chão… Só porque o mulato velho na última eleição fora o melhor cabo eleitoral da oposição. O general chamou-o a intendência. Quis esbofeteá-lo. O mulato reagiu, disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia…

Petronilho compreendeu tudo. Muito menino, pensou na vingança mas, com o correr do tempo, esqueceu. Depois a situação política da cidade melhorou. O general aos poucos foi perdendo a autoridade. Hoje os jornais já falam na “hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados”. Ninguém mais dá importância ao velho. chegou aos ouvidos de Petronilho a notícia de que a fera agonizava. Então ele se apresentou como enfermeiro. Agora goza, provoca, desrespeita. E fica rindo… Pede a Deus que lhe permita ver o fim, que não deve tardar. É questão de meses, de semanas, talvez até de dias… O animal passou o inverno metido na toca, conversando com os seus defuntos, gritando, dizendo desaforos para os fantasmas, dando vozes de comando: “Romper fogo! Cessar Fogo! Acampar”.

E recitando coisas esquisitas. “V. Exa. precisa de ser reeleito para glória do nosso invencível Partido”. Outras vezes olhava para o busto e berrava: “Inimigo não se poupa. Ferro neles”.

Mais sereno agora, o general estende a mão pedindo. Petronilho dá-lhe o copo de suco de laranja. O velho bebe, tremulamente. Lambendo os beiços, como se acabasse de saborear o seu prato predileto, o mulato volta para a cozinha, a pensar em novas perversidades.

O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isto já lhe pertenceu… Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos; derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu à ordem de ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua.

Fecha os olhos e recorda a glória antiga.

Um grito de criança. O general baixa os olhos. No jardim, o bisneto brinca com os pedregulhos do chão. Seus cabelos louros estão incendiados de sol. O general contempla-o com tristeza e se perde em divagações…

Que será o mundo de amanhã, quando Chiquinho for homem feito? Mais aviões cruzarão nos céus. E terá desaparecido o último “homem” da face da terra. Só restarão idiotas efeminados, criaturas que acreditam na igualdade social, que não têm o sentido da autoridade, fracalhões que não se hão de lembrar dos feitos dos seus antepassados, nem… Oh! Não vale a pena pensar no que será amanhã o mundo dos maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos Campolargos!

E, dispnéico, se entrega de novo ao devaneio, adormentado pela carícia do sol.

De repente, a criança entra de novo na sala, correndo, muito vermelho:

— Vovô! Vovô!

Traz a mão erguida e seus olhos brilham. Faz alto ao pé da poltrona do general.

— A lagartixa, vovozinho…

O general inclina a cabeça. Uma lagartixa verde se retorce na mãozinha delicada, manchada de sangue. O velho olha para o bisneto com ar interrogador. Alvorotado, o menino explica:

— Degolei a lagartixa, vovô!

No primeiro instante o general perde a voz, no choque da surpresa. Depois murmura, comovido:

— Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu patife!

E afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de sáurio.

Autor: Érico Veríssimo

Por Irineu Magalhães

Fonte: Contos do covil
Extraído do livro Entrevero, L&PM Editores – Porto Alegre (RS), 1984

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O Barril de Amontillado

O Barril de Amontillado


Suportei o melhor que pude as injúrias de Fortunato; mas, quando ousou insultar-me, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza de meu caráter, não havereis de supor, no entanto, que eu tenha proferido qualquer ameaça. No fim, eu seria vingado. Este era um ponto definitivamente assentado, mas a própria decisão com que eu assim decidira excluía qualquer idéia de perigo. Assim devia apenas castigar, mas castigar impunemente. Uma injúria permanece irreparada, quando o castigo alcança aquele que se vinga. Permanece, igualmente, sem reparado, quando o vingador deixa de fazer com que aquele que o ofendeu compreenda que e ele quem se vinga.


É preciso que se saiba que, nem por meio de palavras, nem de qualquer ato, dei a Fortunato motivo para que duvidasse de minha boa vontade. Continuei, como de costume, a sorrir em sua presença, e ele não percebia que o meu sorriso, agora, tinha como origem a ideia da sua imolação.

Esse tal Fortunato tinha um ponto fraco, embora, sob outros aspectos, fosse um homem digno de ser respeitado e, até mesmo, temido. Vangloriava-se sempre de ser entendido em vinhos. Poucos italianos possuem verdadeiro talento para isso. Na maioria das vezes, seu entusiasmo se adapta aquilo que a ocasião e a oportunidade exigem, tendo em vista enganar os milionários ingleses e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunado, como todos os seus compatriotas, era um intrujão; mas, com respeito a vinhos antigos, era sincero. Sob este aspecto, não havia grande diferença entre nós – pois que eu também era hábil conhecedor de vinhos italianos, comprando-os sempre em grande quantidade, sempre que podia. Uma tarde, quase ao anoitecer, em plena loucura do carnaval, encontrei o meu amigo. Acolheu-me com excessiva cordialidade, pois que havia bebido muito. Usava um traje de truão, muito justo e listrado, tendo à cabeça um chapéu cônico, guarnecido de gizos.

Fiquei tão contente de encontrá-lo, que julguei que jamais estreitaria a sua mão como naquele momento.

– Meu caro Fortunato – disse-lhe eu -, foi uma sorte encontrá-lo. Mas, que bom aspecto tem você hoje! Recebi um barril como sendo de Amontillado, mas tenho minhas duvidas.

– Como? – disse ele. – Amontillado? Um barril? Impossível! E em pleno carnaval!

– Tenho minhas dúvidas – repeti – e seria tolo que o pagasse como sendo de Amontillado antes de consultá-lo sobre o assunto. Não conseguia encontrá-lo em parte alguma, e receava perder um bom negócio.

– Amontillado!

– Tenho minhas dúvidas.

– Amontillado!

– E preciso efetuar o pagamento.

– Amontillado!

– Mas, como você esta ocupado, irei à procura de Luchesi. Se existe alguém que conheça o assunto, esse alguém é ele. Ele me dirá …

– Luchesi é incapaz de distinguir entre um Amontillado e um Xerez.

– Não obstante, há alguns imbecis que acham que o paladar de Luchesi pode competir com o seu.

-Vamos, vamos embora.

– Para onde?

– Para as suas adegas.

– Não, meu amigo. Não quero abusar de sua bondade. Penso que você deve ter algum compromisso. Luchesi…

– Não tenho compromisso algum. Vamos.

– Não, meu amigo. Embora você não tenha compromisso algum, vejo que esta com muito frio. E as adegas são insuportavelmente úmidas. Estão recobertas de salitre.

– Apesar de tudo, vamos. Não importa o frio. Amontillado! Você foi enganado. Quanto a Luchesi, não sabe distinguir entre Xerez e Amontillado.

Assim falando, Fortunato tomou-me pelo braço. Pus uma máscara de seda negra e, envolvendo-me bem em meu roquelaire, deixei-me conduzir ao meu palazzo.

Não havia nenhum criado em casa, pois que todos haviam saído para celebrar o carnaval. Eu lhes dissera que não regressaria antes da manhã seguinte, e lhes dera ordens estritas para que não arredassem pé da casa. Essas ordens eram suficientes, eu bem o sabia, para assegurai o seu desaparecimento imediato, tão logo eu lhes voltasse as costas. Tomei duas velas de seus candelabros e, dando uma a Fortunato, conduzi-o, curvado, através de uma seqüência de compartimentos, à passagem abobadada que levava à adega.

Chegamos, por fim, aos últimos degraus e detivemo-nos sobre o solo úmido das catacumbas dos Montresor.

O andar de meu amigo era vacilante e os guizos de seu gorro retiniam a cada um de seus passos.

– E o barril? – perguntou.

– Está mais adiante – respondi. – Mas observe as brancas teias de aranha que brilham nas paredes dessas cavernas.

Voltou-se para mim e olhou-me com suas nubladas pupilas, que destilavam as lágrimas da embriaguez.

– Salitre? – perguntou, por fim.

– Salitre – respondi. – Há quanto tempo você tem essa tosse?

Meu pobre amigo pôs-se a tossir sem cessar e, durante muitos minutos, não lhe foi possível responder.

– Não é nada – disse afinal.

– Vamos – disse-lhe com decisão. – Vamos voltar. Sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz, como eu também o era. Você é um homem cuja falta será sentida. Quanto a mim, não impor-ta. Vamos embora. Você ficará doente, e não quero arcar com essa responsabilidade. Além disso, posso procurar Luchesi . . .

– Basta – exclamou ele. – Esta tosse não tem importância; não me matará. Não morrerei por causa de uma simples tosse.

-É verdade, é verdade – respondi. – E eu, de fato, não tenho intenção alguma de alarmá-lo sem motivo. Mas você deve tomar precauções. Um gole deste Medoc nos defenderá da umidade.

E, dizendo isto, parti o gargalo de uma garrafa que se achava numa longa
fila de muitas outras iguais, sobre o chão úmido.

– Beba – disse, oferecendo-lhe o vinho.

Levou a garrafa aos lábios, olhando-me de soslaio. Fez uma pausa e saudou-me com familiaridade, enquanto seus guizos soavam.

– Bebo – disse ele – à saúde dos que repousam enterrados, em torno de nós.

– E eu para que você tenha vida longa. Tomou-me de novo o braço e prosseguimos. – Estas cavernas – disse-me – são extensas.

– Os Montresor – respondi – formavam uma família grande e numerosa.

– Esqueci qual o seu brasão.

– Um grande pé de ouro, em campo azul. O pé esmaga uma serpente ameaçadora, cujas presas se acham cravadas no salto.

– E a divisa?

– Nemo me impune lacessit.

– Muito bem! – exclamou.

O vinho brilhava em seus olhos e os guizos retiniam. Minha própria imaginação se animou, devido ao Medoc. Através de paredes de ossos empilhados, entremeados de barris e tonéis, penetramos nos recintos mais profundos das catacumbas. Detive-me de novo e, essa vez, me atrevi a segurar Fortunato pelo braço, acima do cotovelo.

– O salitre! – exclamei. – Veja como aumenta. Prende-se, como musgo, nas abóbadas. Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade filtram-se por entre os ossos. Vamos. Voltemos, antes que seja tarde demais. Sua tosse…

– Não é nada – respondeu ele. – Prossigamos. Mas, antes, tomemos outro gole do Medoc.

Parti o gargalo de uma garrafa de vinho De Grâve a dei-a a Fortunato. Ele a esvaziou de um trago. Seus olhos cintilaram com brilho ardente. Pôs-se a rir e atirou a garrafa para o ar, com gesticulação que não compreendi.

Olhei-o, surpreso. Repetiu o movimento, um movimento grotesco.

– Você não compreende? – perguntou.

– Não, não compreendo – respondi.

– Então é porque você não pertence à irmandade.

– Como?

– Não pertence à maçonaria.

– Sim, sim. Pertenço.

– Você? Impossível! Um maçom?

– Um maçom – respondi.

– Prove-o – disse ele.

– Eis aqui – respondi, tirando de debaixo das dobras de meu roquelaire uma colher de pedreiro.

– Você está gracejando! – exclamou recuando alguns passos. – Mas prossigamos: vamos ao Amontillado.

– Está bem – disse eu, guardando outra vez a ferramenta debaixo da capa e oferecendo-lhe o braço. Apoiou-se pesadamente em mim. Continuamos nosso caminho, em busca do Amontillado. Passamos através de uma série de baixas abóbadas, descemos, avançamos ainda, tornamos a descer e chegamos, afinal, a uma profunda cripta, cujo ar, rarefeito, fazia com que nossas velas bruxuleassem, ao invés de arder normalmente.

Na extremidade mais distante da cripta aparecia uma outra, menos espaçosa. Despojos humanos empilhavam-se ao longo de seus muros, até o alto das abóbadas, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três dos lados dessa cripta eram ainda adornados dessa maneira. Do quarto, os ossos haviam sido retirados e jaziam espalhados pelo chão, formando, num dos cantos, um monte de certa altura. Dentro da parede, que, com a remoção dos ossos, ficara exposta, via-se ainda outra cripta ou recinto interior, de uns quatro pés de profundidade, três de largura e seis ou sete de altura. Não parecia haver sido construída para qualquer uso determinado, mas constituir apenas um intervalo entre os dois enormes pilares que sustinham a cúpula das catacumbas, tendo por fundo uma das paredes circundantes de sólido granito.

Foi em vão que Fortunato, erguendo sua vela bruxuleante, procurou divisar a profundidade daquele recinto. A luz, fraca, não nos permitia ver o fundo.

– Continue – disse-lhe eu. – O Amontillado está aí dentro. Quanto a Luchesi. . .

– É um ignorante – interrompeu o meu amigo, enquanto avançava com passo vacilante, seguido imediatamente por mim.

Num momento, chegou ao fundo do nicho e, vendo o caminho interrompido pela rocha, deteve-se, estupidamente perplexo. Um momento após, eu já o havia acorrentado ao granito, pois que, em sua superfície, havia duas argolas de ferro, separadas uma da outra, horizontalmente, por um espaço de cerca de dois pés. De uma delas pendia uma corrente; da outra, um cadeado. Lançar a corrente em torno de sua cintura, para prendê-lo, foi coisa de segundos. Ele estava demasiado atônito para oferecer qualquer resistência.

Retirando a chave, recuei alguns passos.

– Passe a mão pela parede – disse-lhe eu. – Não poderá deixar de sentir o salitre. Está, com efeito, muito úmida. Permita-me, ainda uma vez, que lhe implore para voltar. Não? Então, positivamente, tenho de deixá-lo. Mas, primeiro, devo prestar-lhe todos os pequenos obséquios ao meu alcance.

– O Amontillado! – exclamou o meu amigo, que ainda não se refizera de seu assombro.

– É verdade – respondi -, o Amontillado.

E, dizendo essas palavras, pus-me a trabalhar entre a pilha de ossos a que já me referi. Jogando-os para o lado, deparei logo com uma certa quantidade de pedras de construção e argamassa. Com este material e com a ajuda de minha colher de pedreiro, comecei ativamente a tapar a entrada do nicho.

Mal assentara a primeira fileira de minha obra de pedreiro, quando descobri que a embriaguez de Fortunato havia, em grande parte, se dissipado. O primeiro indício que tive disso foi um lamentoso grito, vindo do fundo do nicho. Não era o grito de um homem embriagado. Depois, houve um longo e obstinado silêncio. Coloquei a segunda, a terceira e a quarta fileiras. Ouvi, então, as furiosas sacudidas da corrente. O ruído prolongou-se por alguns minutos, durante os quais, para deleitar-me com ele, interrompi o meu trabalho e sentei-me sobre os ossos. Quando, por fim, o ruído cessou, apanhei de novo a colher de pedreiro e acabei de colocar, sem interrupção, a quinta, a sexta e a sétima fileiras. A parede me chegava, agora, até a altura do peito. Fiz uma nova pausa e, segurando a vela por cima da obra que havia executado, dirigi a fraca luz sobre a figura que se achava no interior.

Uma sucessão de gritos altos e agudos irrompeu, de repente, da garganta do vulto acorrentado, e pareceu impelir-me violentamente para trás. Durante breve instante, hesitei… tremi. Saquei de minha espada e pus-me a desferir golpes no interior do nicho; mas um momento de reflexão bastou para tranqüilizar-me. Coloquei a mão sobre a parede maciça da catacumba e senti-me satisfeito. Tornei a aproximar-me da parede e respondi aos gritos daquele que clamava. Repeti-os, acompanhei-os e os venci em volume e em força. Fiz isso, e o que gritava acabou por silenciar.

Já era meia-noite, a minha tarefa chegava ao fim. Completara a oitava, a nona e a décima fileiras. Havia terminado quase toda a décima primeira – e restava apenas uma pedra a ser colocada e rebocada em seu lugar. Ergui-a com grande esforço, pois que pesava muito, e coloquei-a, em parte, na posição a que se destinava. Mas, então, saiu do nicho um riso abafado que me pôs os cabelos em pé. Seguiu-se-lhe uma voz triste, que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. A voz dizia:

– Ah! ah! ah! . . . eh! eh! eh! . . . Esta é uma boa piada… uma excelente piada! Vamos rir muito no palazzo por causa disso . . . ah! ah! ah! . . . por causa do nosso vinho… ah! ah! ah!

– O Amontillado! – disse eu.

– Ah! ah! ah! . . . sim, sim . . . o Amontillado. Mas não está ficando tarde? Não estarão nos esperando no palácio. . . a Sra. Fortunato e os outros? Vamos embora.

– Sim – respondi -, vamos embora.

– Pelo amor de Deus, Montresor!

– Sim – respondi -, pelo amor de Deus!

Mas esperei em vão qualquer resposta a estas palavras. Impacientei-me.

Gritei, alto:

– Fortunato!

Nenhuma resposta.

Tornei a gritar:

– Fortunato!

Ainda agora, nenhuma resposta. Introduzi uma vela pelo orifício que restava e deixei-a cair dentro do nicho. Chegou até mim, como resposta, apenas um tilintar de guizos. Senti o coração opresso, sem dúvida devido à umidade das catacumbas. Apressei-me para terminar o meu trabalho. Com esforço, coloquei em seu lugar a última pedra – e cobri-a com argamassa. De encontro à nova parede, tornei a erguer a antiga muralha de ossos. Durante meio século, mortal algum os perturbou.

Edgar Allan Poe

Por Irineu Magalhães

Extraído do site Nox in Vitro

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Bill e a Bomba Jamaicana


Sempre fui bem com as mulheres. E olha que não tenho dinheiro, e nem sou tão bonito assim. Tudo bem, vá lá, eu sou bonito. Melhor do que isso, a minha experiência adquirida em minha adolescência é o melhor em mim: sei tudo sobre as mulheres, o que elas gostam, o que elas querem e tudo o que você possa imaginar. E, na verdade, é a isso a que se deve o meu sucesso com elas, e não ao meu rostinho bonito.

Partindo desse princípio, procurei um emprego em que eu tivesse que usar uniforme. É... elas adoram! A origem dessa preferência, eu não sei, deve ser fetiche, sei lá. Sou cobrador de ônibus na única empresa do ramo em Nova Friburgo e, cara, as gatas quando entram no coletivo, nem vão lá para frente, tomar seus assentos: permanecem ali ao meu lado, conversamos a viagem inteira. Não consegui pegar todas, é verdade, mas eu estou sempre acompanhado, e muito bem acompanhado, diga-se de passagem.

Outro ponto é o meu nome. Chernobill, com dois éles. Minha mãe é nordestina, e sabe o que eu descobri sobre eles? Adoram nomes estrangeiros. É verdade, conheço um monte de Gladson, Clayton, e Stephany por aí. Comigo não seria diferente. Mas Chernobill foi sacanagem, fui zoado por anos na escola, até que descobri como levar vantagem com ele. Certa vez perguntaram meu nome só para sacanear com uma aluna nova – Marina, muito gatinha – e eu respondi, de forma teatral, “Meu nome é Bill, Chernobill.” As risadas foram inevitáveis, mas agora, não era para me zoar, a galera achou bacana, e principalmente a Marina, que me achou super descolado, e já sabem, o papai aqui a pegou muito. De lá para cá só me apresento assim, e sempre dá certo. Obrigado mamãe!

Pois é, outro dia desses estava no meu trampo, o ônibus parou no ponto e entrou uma única pessoa: uma morena cavala, cavala mesmo, tinha os cabelos bem negros, feito uma índia, os diminutos pelos de seu braço eram delicados e dourados (imaginem o resto!).

Ela subiu as escadas com um sorriso maravilhoso, ofegante e já foi logo me dando um “bom dia”.

- Bom dia! - disse ela abrindo a bolsa com dificuldade, antes da roleta.

- Pode passar! - eu disse, tentando ser solícito, e imitando seu sorriso, também simpático. Ela agradeceu e finalmente achou o dinheiro e me pagou.

- Desculpe, eu ainda não me acostumei com os horários dos ônibus... - comentou ela ainda sorriso.

- Se mudou há pouco tempo, não é?

- Como você sabe? - perguntou-me, um tanto desconcertada.

- Bem, eu trabalho nessa linha deve ter uns seis meses, e nunca a vi por aqui. Se tivesse, eu com certeza me lembraria. - respondi olhando-a nos olhos. Outro segredo, anotem: sempre olhem nos olhos das gatas. Ela ruborizou na hora, estava dando certo.

- Pois é... - disse ela retomando a conversa. E isso foi bom, ela poderia muito bem ter pego seu troco e ido tomar seu lugar, mas não fez; sinal que a conversa estava sendo interessante.

- Está indo pro trabalho?

- É... consegui um emprego numa confecção...

- Não trouxe agasalho? Vai fazer frio hoje... (Novidade! Fazer frio em Friburgo era quase uma redundância)

- Caramba, será mesmo? - disse ela alisando os braços. Meu olhar foi como um close de cinema naquela pele morena e apessegada. Voltei a mim e respondi.

- Com certeza. Quando as nuvens cobrem o pico da Caledônia, pode acreditar, vai esfriar. - disse apontando para o maciço rochoso.

- Poxa, obrigada pela dica, amanhã vou me precaver. Olha, eu acho que meu ponto é o próximo, vou descer. Tchau, beijo... - despediu-se ela mandando-me um beijo. Cara, você acredita? Ela me mandou um beijo! Aquela cena eu vi em câmera lenta, e se eu tivesse o poder de providenciar um replay, com o nome piscando em amarelo no canto da tela, eu o faria.

No dia seguinte, no mesmo bat-horário, no mesmo bat-canal, lá veio a morena subindo no ônibus.

- Caramba, bem tu falou, está fazendo frio para caramba! - disse ela, bem agasalhada dessa vez.

- Não disse? - concluí cheio de moral. - Desculpe, a gente está conversando, e eu nem sei seu nome, sabe, eu gosto de saber o nome das pessoas... (olha aí a minha estratégia surgindo novamente)

- Kátia, com ká... - disse ela sorrindo. Que sorriso maravilhoso, velho.

- Meu nome Bill, Chernobill. - apresentei-me. O sorriso dela aumentou mais ainda.

- Tipo aquele detetive? - disse após uma risadinha.

- James Bond? Ele era espião. - respondi, bancando o intelectual.

- Chernobill não é o nome de uma cidade? - perguntou-me com o olhar intrigado. Aí eu fiz toda aquela minha performance de explicação da origem do nome.

- Chernobill é uma cidade na Ucrânia, que teve um acidente nuclear, lembra?

- Ah! Sim... mas não era na Rússia?

- Ali bem ali pertinho. - disse atendendo outro passageiro.

- Chernobill... Você é engraçado...

- É... minha mãe sempre disse que eu sou uma gracinha... - disparei novamente.

- Poxa, eu nem sei o significado do meu nome.

- Ah, mas eu faço questão de pesquisar para te falar! - disse com o meu olhar sedutor – porque eu tenho um olhar sedutor. Fazer o quê? Eu tenho, tem gente que não tem, a vida é assim...

- Ih, meu ponto chegou, tchau! - disse ela saindo apressadamente, deixando o beijo característico. “Lindo, Kátia, continue assim...” pensei.

Fiquei dias trabalhando ali. Ela gostava de fazer charminho. Mas a sorte acompanha os audazes, e eu sou audaz. No fatídico dia – era uma sexta-feira – ela subiu no ônibus – estava quente – com uma saia jeans bem pequena e, essa era a minha deixa.

- Bom dia, Bill!

- Bom dia... - cumprimentei-a, de forma lenta, só para deixar bem claro que eu havia percebido suas pernas nuas - e quem não iria perceber? - Vem cá, teu namorado te deixa sair assim? - perguntei.

- Eu não tenho namorado. - respondeu ela de pronto. Uh! Era só que eu queria saber! - E mesmo que tivesse, homem ciumento nenhum vai mandar em mim.

- Poxa, mas aí não é ciúme, é cuidado. - argumentei sorrindo.

- Ah! Cuidado pode! - respondeu ela sorrindo também. Que delícia.

- Você viu? Tem um filme nacional bacana passando no cinema. Estava a fim de ver...

- Ué, e porque não vai? - uma pergunta retórica, não é mesmo?

- Poxa, sozinho é bem chato, não é? - disse com cara de cachorro que caiu da mudança. Ela me olhou com os olhos semicerrados – ela sabia que eu estava a chamando para sair – e disparou.

- Eu vou com você – assim, seco, na lata.

- Largo às seis, a sessão começa às sete e quarenta e cinco. - Quanta mentira. Ouvi por alto sobre o filme, na rádio, eu lá sabia os horários das sessões?

- A que horas você me pega? - “Eu te pego a qualquer hora, gatinha!”

- Não sei, onde eu te pego? - “Em qualquer lugar!”

- Pode ser em frente à prefeitura.

- Então às seis e quarenta está bom, não está?

- Está ótimo... - chegou meu ponto! Até mais tarde, beijo! - despediu-se ela novamente com um beijo, mas este havia sido diferente, parecia mergulhado em luxúria, foi erótico, exatamente do jeito que eu queria.

Fiquei pensando o dia todo naquele beijo. Larguei às seis, desci no Paissandú e fui caminhando apressado pela Rua Leuenroth, improvisando um “Stayin alive” do Bee Gees, com aquela voz fininha, quando passei por uma lanchonete que fica na esquina com a Alberto Braune. Meu olhar distraído pousou sobre um cartaz que dizia em letras garrafais “BOMBA JAMAICANA - Bebida ultra energética”. Eu parei na hora. Passou um filme na minha cabeça, eu não podia deixar aquela mulher na mão, minha performance tinha de ser excelente, eu tinha que dar uma canseira nela. Ela não podia esquecer essa noite...

Entrei na lanchonete e aproximei-me  do cartaz. Xarope de guaraná, castanha de caju, amendoim, catuaba, guaraná em pó, geleia real, kiwi, pitanga, cupuaçu, marapuama, ovo de codorna e gengibre. Caramba, os ingredientes tinham tudo para dar um vigor extremo a qualquer um.

- Amigo, me dá uma Bomba Jamaicana dessa aí. - disse para o atendente da lanchonete.

- Hei, cabeça! - gritou o atendente para outro funcionário. - Uma Bomba Jamaicana para o conterrâneo aqui! - concluiu ele com o sotaque mais nordestino do que o da minha mãe.

A bebida chegou bem gelada em um copo de vidro de 500 mililitros. O ar condensava em sua superfície, e lentamente algumas gotas se formavam, escorrendo e ganhando o balcão, também de vidro. Segurei o copo pensando naquele beijo safado e virei de uma vez só, formando em meus lábios aquele bigode com a espuma da bebida, feito um menino. A cor era avermelhada e lembrava uma vitamina de morango, contudo, o sabor era de guaraná, um pouco azedo talvez. Senti uma leve ardência na gengiva também.

- Me dá outra, por favor. - pedi ao bater o copo no vidro, aproveitando a outra mão para limpar o bigode. Era bom garantir, não é mesmo?

- Cabeça! Manda outra Bomba Jamaicana pro conterrâneo! - disse ele jocosamente. E qual é a graça?, pensei.

A outra bomba chegou mais rápido ainda, devia ser o resto no liquidificador. Mandei para dentro mais rápido ainda. Paguei e segui para casa, uma quitinete na Mac Niven. Tomei um banho rápido, com sabonete neutro e xampu anticaspa. Lembrava daquelas pernas com os pelos dourados, aquele beijo lascivo, mas não, eu precisava ser forte, eu tinha de guardar todas as minhas energias para a Kátia.

Saí do banho e tomei outro, de alfazema. Coloquei uma camisa de gola, por fora da calça, um All Star e saí de casa. Meu carro ficava estacionado em frente ao prédio da quitinete, uma Brasília setenta e seis, branca. Semana passada ela deu um probleminha na bomba de combustível, e por falar em bomba, essa tal de Bomba Jamaicana dá uns gases terríveis. Abri os vidros para o cheiro sair mais rápido e fui para o lugar marcado. Lá estava ela, um vestido curto e apertadíssimo – muito gostosa, muito gostosa mesmo – os cabelos ainda estavam molhados, e esse também era o efeito que o batom tinha dado aos seus lábios carnudos. Hoje ela estava mais cheirosa ainda, um perfume doce de morango silvestre – que maravilha, eu ficava cada vez mais excitado. O esmalte de suas unhas – sacanagem  eu nem reparei nas unhas.

- Que Brasília inteiraça! - disse com aquele sorriso. Parecia até empolgada com a Jacutinga mesmo – esse era o apelido dela.

- É... o mecânico tem bom gosto... - disse tentando disfarçar, ao sair do carro.

- Mecânico?

- É... tive que levar meu carro para a oficina, e para não ficar a pé, ele deixou esse carro comigo. - Baita mentiroso! - Vamos?

- Vamos! - disse ela, eu abri sua porta e ela entrou no carro. Tudo somava ponto nesses momentos iniciais.

Pegamos umas ruas transversais à Alberto Braune até ganhar a José Eugênio Müller , essa rua passava por trás do shopping e era um pouco deserta.

- Você está muito cheirosa... - comentei de forma maliciosa. De vez em quando eu pousava o olhar naquelas pernas.

- Você também está... - retribuiu ela, também de forma maliciosa. Na primeira oportunidade eu encostei o carro e parti para cima dela.

- O que é isso?! - disse ela, com um risinho, tentando bancar a puritana, sei lá, mas correspondendo aos meus beijos.

- Eu não resisto a você! Desde o primeiro dia em que eu te vi eu te desejo, eu te quero! - disse entre beijos naquela boca gostosa.

- Seu safado, eu sei disso! Agora vamos sair daqui, a polícia vai prender a gente! - recomendou ela enquanto ainda me beijava.

Me recompus e arranquei para a Friburgo-Teresópolis. Em pouquíssimo tempo estávamos na portaria do motel. Estiquei o braço e pedi uma suíte, o funcionário me entregou uma chave e eu fiquei paralisado.

- O que foi? - perguntou ela, abismada.

- A suíte. - respondi monocordicamente.

- O que tem a suíte?

- Número 13.

- Você é supersticioso? - perguntou ela com um sorrisinho. Resolvi superar isso rapidamente.

- Não, não, eu estava brincando contigo... - respondi seriamente. O pé de coelho pendurado no retrovisor me desmentia.

Entrei cantando pneu e parei o carro na garagem. Parti para cima dela novamente, que beijo gostoso aquela morena tinha, os seios medianos, faziam um desenho sublime no vestido. Ela desvencilhou-se de mim e saiu do carro. A calcinha não marcava o vestido. Uh! Ela não usava calcinha.

Fui atrás dela, mas ela se esquivava, rindo. Entramos no quarto e ela foi ao banheiro. O vestido foi atirado de lá para o quarto e o chuveiro foi aberto. E eu não podia ter ido tomar banho com ela? Mas eu fiquei ali. Tirei minha roupa, liguei a TV e comecei a aquecer as turbinas. Deus dos céus, ela apareceu ali enrolada na toalha, maravilhosa, e quando eu cair matando, senti uma pontada forte na barriga, larguei meu garoto e me encolhi, segurando o abdômen.

- O que foi? - perguntou ela desfazendo o sorriso.

- A barriga, está doendo... - respondi cerrando os olhos e caminhando com dificuldade para o banheiro.

- Quer que eu peça ajuda? - disse  ela se aproximando.

- Não, está tudo bem, eu já estou voltando... - respondi com a voz embargada, e ela foi para a cama, aquecendo as turbinas com o filme.

Desabei sobre a privada e fiquei uns cinco minutos só gemendo. Qualquer um que passasse pelo basculhante acreditaria que eu estivesse tendo um belo de um orgasmo. Um som borbulhante correu minha barriga de fora a fora e ganhou a atmosfera. Que cheiro horrível! Os gases vieram em carreata, um mais sonoro que o outro; o formato do vaso criava uma acústica incrível que potencializava o traque.

- Credo, que cheiro é esse?! - perguntou a Kátia do quarto. Os motéis deviam se preocupar com isso, os banheiros tinha que separados dos quartos. É claro, deveria haver um com acesso quarto, com banheira, aquele fetiche todo. Mas um deveria ficar separado, com sanitário, para evitar esse tipo de constrangimento, poxa.

- Está tudo bem, fica tranquila. - respondi tristemente. Não estava tudo bem.

Daí a pouco desceu tudo, tudo mesmo. Eu pensei que ia morrer ali: minha barriga doía como eu nunca senti antes, os gases, horríveis, vinham sonoramente altos, devido à acústica da privada e, Deus, como eram horríveis, parecia algo podre – nem eu estava me aguentando.

Depois de uns quarenta minutos – a Kátia já tinha se resolvido sozinha – eu parei de cagar, parei de peidar, mas a barriga continuava doendo. Tomei um banho e tentei me lembrar do corpo da Kátia, ela era maravilhosa, mas meu garoto não queria nem saber. Só dormia.

Fui para o quarto, totalmente sem graça, ela estava deitada maravilhosamente sobre a cama, com aquela cara de safada.

- Como você está Bill? - perguntou-me, parecia realmente preocupada.

- Estou bem! - disse, tentando parecer forte. Estava ruim até para ficar em pé. Deitei por trás dela, fiquei beijando seu pescoço e suas costas. Ela se virou para mim, beijou-me, mordeu-me (ela era uma delícia e sabia muito bem o que estava fazendo), mas não teve jeito, meu garoto não quis nada com a hora do Brasil.

- Não fica assim não, gatinho, nós vamos ter muitas outras oportunidades... - disse ela me abraçando. Puta que pariu! Tinha que ter sido hoje! Que vergonha, eu bancando o maior garanhão, e no final saí como o maior cagão.

Dormimos ali – pelo menos isso foi gostoso – eu levei ela até sua casa e fui para a minha. Eu queria que a noite tivesse sido inesquecível para ela e acho que consegui. Se querem um conselho, da Jamaica, somente o Bob Marley, por favor.  A bomba só atrapalhou, e como dizem, muito ajuda quem não atrapalha.

George dos Santos Pacheco

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Artes de plástico


Os ingleses com suas  revoluções ensinaram ao mundo a produzir em série; centenas, milhares por dia. Vieram os chineses e baratearam o custo da produção; escravos, e mais chumbo, veneno, milhões por hora. Estava pouco. Estavam em todos os cantos, segmentos, mas precisam de mais PIB e mais 'dolares'. Foi um amigo em distante lugar que me disse "dolares!" assim mesmo sem o agudo. Ninguém sabe, mas Ele é agudíssimo de alma e de  língua: Vê! Tomaram o lugar do artesão, a barraquinha de artesanato está cheia de produtos idênticos, quinquilharias de chumbo, produzem Monet's e Gogh's em impressoras violentas, parece que a arte está restrita aos engenheiros (breves artistas de plástico), artes plástico. Nas lojas de discos os cantores e compositores berram, urram em faixas, o que eles querem é dolares, e para ninguém ver o estrago ou sentir falta de arte as antenas se ligam arrebanhando o gado sobre confortáveis sofás. Ora, Huxley previu a produção de homens em série, Alberto Moravia disse "homem em série é o contrário do artista", eles sacaram tudo, o homem já é produzido em série, pelo menos em metafísica, e a produção humana em série mata a arte.

Por Irineu Magalhães




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A filosofia do erro


Não é segredo para ninguém que o trânsito de nossas cidades a cada dia se torna um caos imperscrutável. E a culpa, meus senhores... bem, de quem é a culpa?

Certa feita estava eu no centro da cidade com a minha família, atravessando a avenida principal, em que diversos supermercados, lojas e bancos estão instalados – e por isso mesmo é uma via muito movimentada – em que transitam ônibus, caminhões e carros de passeio. Nessa rua – ah, se essa rua, se essa rua fosse minha... – os carros param em vagas de farmácia (mesmo que o destino não seja ela), ou em fila dupla, o que é pior ainda. E nesse fatídico dia, minha esposa precisava ir a uma determinada loja, e eu não tinha lugar algum para estacionar o carro. Decidi parar também na famigerada fila dupla, “rapidinho”, perto da vaga (já ocupada) destinada às drogarias.

– Mas e se vier algum guarda? – perguntou minha esposa, em tom preocupado.

– Qualquer coisa eu digo que você foi à farmácia... – respondi, ainda com o carro em movimento, me aproximando do local de parada. Ela ficou em silêncio, fitando-me com olhar censurador.

Parei o carro, mas arremeti, ao encarar seus olhos. Caramba, não faz muito tempo eu praguejava contra quem para o carro em fila dupla, contra o pedestre que atravessa fora da faixa... o que me faz pensar que eles estão errados, e eu não? Simplesmente porque, naquele momento, aquele erro me convinha. Ou então está escrito no Código Brasileiro de Trânsito “proibido parar em fila dupla, exceto se algum ocupante for rapidinho em uma loja ou farmácia”? Não, não está. Assim, eu estava errado – e sabia que estava – da mesma forma que os outros, independente de minhas justificativas.

E não é apenas no trânsito que isso acontece, não, mas no comércio; na justiça; na segurança; na saúde; na educação, e em várias situações do nosso cotidiano. O erro consciente.

Por que se vende o voto? Porque convém.

Porque políticos levam dinheiro público em malas, cuecas e meias? Porque lhes convém.

Por que não se devolve o troco errado, por que se roubam frangos, por que se estaciona em fila dupla, porque se mente, por que se adultera? Porque convém.

O erro consciente é o que alimenta a injustiça, a desigualdade e a fome em nossa sociedade. Porque se o erro convém a alguma pessoa, com certeza ele prejudica a outra. Se buscássemos fazer as coisas certas, independente de nossas necessidades pessoais ou familiares, o mundo seria completamente diferente. Preocupamo-nos em criticar o outro, mas não enxergamos a trave em nossos próprios olhos; censuramos a roupa suja no varal do vizinho, sem perceber que é nossa própria vidraça que está imunda. E daí, erramos, transgredimos... e nessa terra de gigantes, todo mundo é uma ilha, cada um olhando para seu próprio umbigo. Ignoramos nossos próprios erros ou o dos outros porque nos interessa de alguma forma. Hipócritas!

Exemplo comum dessa hipocrisia que se tornou epidemia na raça humana é o apelo indiscriminado ao consumo de bebida alcoólica – que é uma droga lícita. Atualmente, fala-se muito em “lei seca” e este ano, inclusive, o governo federal gastou R$ 5 milhões com a produção de cinco vídeos institucionais e com a veiculação de peças publicitárias, incluindo outdoors e painéis, com a campanha “Bebeu, perdeu”, para conscientizar quem tem menos de 18 anos sobre os malefícios do álcool. Quanta hipocrisia. O que mais se vê, em qualquer cidade de nossa pátria amada e idolatrada (salve, salve!) são anúncios de festas em que o destaque não é o artista que vai se apresentar, mas a liberação de bebidas alcoólicas gratuitamente a noite toda, ou até determinado horário, ou somente para as mulheres, com o fito de atrair público. Isso não é um estímulo? É no mínimo paradoxal, lançar campanhas contra o consumo de álcool, e cruzar os braços diante disso.

Será que ninguém vê o caos em que vivemos? Onde está o pessoal da campanha? Cadê o governo? Não estão vendo isso? Oh, é claro que estão vendo. Entretanto, mais uma vez o erro convém. A alguém: sujeito oculto ou indeterminado.

Mas e o trânsito, Pacheco, de quem é a culpa? E o comércio, a justiça, a segurança, a saúde, e a educação, de quem é a culpa? Bem, a culpa, meus senhores... a culpa...

George dos Santos Pacheco
pacheconetuno@oi.com.br

* Publicado na Revista Êxito Rio, em 13/03/2014.

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Pedro Páramo - Juan Rulfo

"Pedro Páramo" (1955), uma obra prima da literatura mundial, do escritor e fotógrafo mexicano Juan Rulfo (1917-1986), único  livro do escritor. Em uma narrativa que mistura romance, ficção e poesia, "Pedro Páramo" consegue conquistar o leitor nas primeiras páginas. É um tratado do sentimento humano, dos desejos e pavores mais ocultos: vingança, amor, ódio e servidão. 


(...) -Não sei, João Preciado. Há tantos anos que não levantava o rosto, que me esqueci do céu. E ainda que o houvesse feito, que haveria ganho? O céu está tão alto, e meus olhos tão sem vista, que vivia contente em saber onde ficava a terra. Além disso, perdi todo meu interesse desde que o padre Rentería me assegurou que jamais conheceria a glória. Que nem sequer de longe a veria… Foi coisa de meus pecados; mas ele não me devia tê-lo dito. Já por si a vida se leva com trabalhos. A única coisa que faz a a uma pessoa mover os pés é a esperança de que ao morrer a levem de um lugar a outro; mas quando lhe fecham uma porta e a que fica aberta é só a do inferno, mais vale não haver nascido… O céu para mim, João Preciado, está aqui onde estou agora.

Por Irineu Magalhães


Por Irineu Magalhães

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PARA UMA INTRODUÇÃO DO ENTENDIMENTO DA ARTE





 Por André Anacoreta

“O artista não obedece a regras fixas. Ele simplesmente intui o caminho a seguir”. 
E.G



Certamente que há muitas dificuldades em torno de tentar definir o que é e o que não é arte. Pois a simples tentativa, a simples intenção de objetivação, acaba por impor uma lei – mais que isso – uma ditadura da arte. Por isso que, acertadamente, Gombrich diz que “existem somente artistas”. Um modo sutil e inteligente de “escapar” com estilo de tal problemática. Contudo, ele não apenas soube sair com esperteza, mas também procurou sugerir um caminho na direção de um melhor entendimento da relação do artista com sua obra. De como que o artista é afetado por sua criação, sangrando junto de cada tema, de cada retomada de pincelada; de cada linha; de cada passo ao desconhecido. Acontece que o artista, mais do que viver de sua arte, vive sua arte, respira por ela. E cada arte e artista, em cada época, atingem a si e aos outros de modos diferentes. Como observa o autor: “Ora, os pintores sentem, às vezes, como se estivessem nessa viajem de descoberta. Querem ver o mundo como uma novidade e rejeitar todas as noções aceitas e todos os preconceitos sobre a cor rosada da carne e as maçãs amareladas ou vermelhas. Não é fácil nos livrarmos dessas ideias preconcebidas, mas os artistas que melhor conseguem fazê-lo produzem geralmente as obras mais excitantes. Eles é que nos ensinam a ver na natureza novas belezas de cuja existência não tínhamos sequer suspeitado.”.
Se a arte fosse homogênea e imutável, e não evoluísse a partir de si mesma e sobre o mundo, de modo algum seria possível a tão rica variedade que vem se tecendo desde os tempos mais antigos. O artista é como um espelho que reflete o exterior – que está fora, no mundo – e o interior, que são suas angústias, seus medos, seus desejos, seus sonhos. Ele consegue fazer a fusão desses dois mundos e através disso gerar os mais diversos olhares; suscitar as mais diversas sensações; provocar os mais incríveis assombros. Mesmo quando sofre alguma limitação propriamente sua ou externamente imposta, como no caso citado por Ernst Gombrich, a saber, o que envolveu o pintor italiano Caravaggio e seu quadro de São Mateus: “[...] Recebeu ele a encomenda de pintar um quadro de São Mateus para o altar de uma igreja em Roma. O santo deveria ser reproduzido escrevendo o evangelho e, para mostrar que os evangelhos eram a palavra de Deus, teria que haver no quadro um anjo inspirando a escrita. Caravaggio, que era então um jovem artista altamente imaginativo e decidido, pensou longamente sobre a provável situação de um velho e pobre trabalhador, simples publicano, ao ter subitamente que se sentar para escrever um livro. E, assim, pintou um quadro de São Mateus calvo e descalço, os pés sujos de terra, agarrando desajeitadamente o enorme volume e franzindo ansiosamente o cenho sob a tensão da incomum tarefa de escrever. Ao lado do santo, pintou um jovem anjo que parece recém-chegado das alturas e que gentilmente guia a mão do trabalhador como uma professora faz com a mão de uma criança. Quando Caravaggio entregou o quadro à igreja, em cujo altar-mor seria colocado, as pessoas se escandalizaram com o que consideraram uma falta de respeito pelo santo. A pintura não foi aceita, e Caravaggio teve que tentar de novo. [...]”.
Caravaggio pintava para a Igreja, mas não se restringia em ser seu fantoche. Em cada obra colocava seu toque, imprimia seu olhar e seu traço únicos. Daí que quando vemos um quadro de Caravaggio pela segunda ou terceira vez, – sua cor, seu jogo de luzes, sua expressão sentimos a necessidade de dizer: “eis um Caravaggio!”, porque somos inclinados a reconhecer o que é próprio da sua obra, o que o faz ser diferente de todos os outros artistas, mesmo quando partilham do mesmo tema e estilo. E quando o fazemos, confirmamos sua peculiar capacidade de nos provocar as mais tocantes sensações. Deixamo-nos atingir pela “carga elétrica” que cada quadro carrega, fundindo nossa sensibilidade mais profunda à sua potência, como o oceano que recebe os raios do céu.
Os artistas, de modo geral, sempre estão procurando por algo e é na procura, no caminho que os obstáculos aparecem. O que levou o zombador Picasso a dizer “Eu não procuro, eu encontro”. O artista é também como um gato que fica a espreita: quando menos se espera ele dá o bote certeiro. Quando ele encontra o que tanto almeja eis seu momento de deus! Inicia-se o nascimento, o ato que mistura prazer e dor; o parto de uma nova ideia; a aurora de um novo tempo. E se o filho que acaba de nascer for belo e perfeito aos seus olhos – por vaidade ou satisfação – sentirá o desejo de mostrá-lo ao mundo ou de ocultá-lo e protegê-lo das garras da mediocridade. Pois pode ser que o mundo não esteja preparado para apreciar tal beleza, ou, que não tenha mesmo a capacidade de ver o que o artista quis mostrar. Neste caso, a obra do artista corre o sério risco de ser interpretada como anomalia, como algo grotesco e repugnante, ou simplesmente como algo excêntrico, digno de gargalhadas. Porque o riso (e o choro) é uma defesa contra aquilo que não compreendemos. A primeira reação de alguém que, de modo algum, é capaz de apreciar as sutilezas de uma nova ideia, de um novo olhar, de algo revolucionário que quebra todas as regras e convenções e preconceitos e tradições, é rir tal qual uma hiena, que assim procede sem saber o motivo do riso.  
Já no final da introdução de sua grande obra História da Arte, Gombrich nos diz algo – a respeito de alguns dos grandes artistas que este mundo assistiu, como Paul Rubens, Albrecht Dürer, Guido Reni, Rembrandt etc.; – que os apaixonados pelas artes, muitas vezes, são obrigados a trancar na garganta. Diz que eles sofreram por suas obras, “sobre elas suaram sangue e, no mínimo, têm o direito de nos pedir que tentemos compreender o que quiseram realizar”. Uma arte que não está ligada à vida pelo cordão umbilical, não tem o porquê de ser. Tudo o que o artista faz, do momento em que acorda, até o momento de descansar, está intrinsecamente relacionado à sua criação. Porém, não se trata apenas de produzir, mas de ser ele próprio uma obra de arte ambulante, capaz de notar os mais ínfimos detalhes da existência. Como se carregasse no espírito uma lupa com o poder de ampliar a percepção. Se se trata realmente disso, nada pode barrar o seu crescimento e, junto com ele, sua curiosidade sempre aguçada. Como o pássaro que canta quando a aurora já ensaia seus primeiros passos do dia e alça voo com a chegada do crepúsculo, assim é o artista que cria por necessidade e que, por isso mesmo, pode ser chamado de artista por direito. Não necessidade de dinheiro, poder ou fama, mas necessidade de exprimir o seu devaneio diante das perplexidades da vida. Necessidade de expressar seus sentimentos mais subterrâneos. Sendo assim, como sofrem os artistas! Tanto suor escavando a crosta da alma, tanto empenho enfrentando os labirintos da mente, escalando o muro das imposições, para no final ser compreendido por tão poucas cabeças.   
Se não existe Arte com A maiúsculo, é porque também não existe a Verdade Absoluta. O que existe é a minha verdade, a sua verdade. Minha arte, sua arte. A arte é o universo e nele cabem bilhões de estrelas, umas mais distantes, outras mais brilhantes. E, como as estrelas, a arte tem nos acompanhado desde sempre. Desde sempre vem nos guiando pelos caminhos tortuosos e tornando o nosso trajeto mais belo e confortante. Ela só nos pede que não a esquecemo-la; que continuemos a olhar para o céu em busca do mistério; que não nos habituemos à vida, ao tempo, às mesmices do quotidiano. Antes que os nossos olhos se fechem de vez e a morte nos ponha para dormir, no eterno sono sem sonhos. 

Imagem: São Mateus e o Anjo, Caravaggio

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